sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Deixem-me Ouvir o Cantar da Chuva


      Este poema foi escrito em 1987, mas cada vez mais, sinto que a actualidade se parece muito com o passado.

Deixem-me ouvir o cantar da chuva.
Deixem-me voar neste poema,
na precipitação,
onde as crianças de pés molhados,
sem calções,
vagueiam nas valetas das cidades.
Deixem-me ouvir
a voz do pensamento,
na luz do solstício de verão,
de pólo negativo ou positivo atraídos.
As pessoas pelas ruas,
absortas,
espantadas.
Divagam na solução
dos problemas sociais da sociedade,
da morte,
a cada aresta das calçadas.

Deixem passar a voz do vento,
o uivar dos lobos,
dos cães vadios,
dos gatos pelos telhados,
da água nas goteiras,
seiva de vida e sangue.
Deixem-me dormir no sono
dos mendigos sem telhado,
farrapos soltos ao vento,
varridos pelo chão,
pela corrente em turbilhão,
cor de lama,
amarelo-torrado,
sem sol, noite ou dia.

Deixem alagar os campos,
as cidades,
as vilas e as aldeias.
Que a água invada as casas,
as fábricas e as igrejas.
Que seja subversiva,
herege,
revolta.
Que seja bandeira de luta,
pecado mortal,
inquisição.
Que chegue à lua em foguetão,
ao monte das oliveiras.
Que suba ao céu e volte a cair.

Deixem passar as enxurradas,
a luz do arco-íris,
pelas gotas do cristal chuvoso.
Que haja inundações
e água afogue
quintas e quintais.
Que arraste os homens,
os animais,
as árvores
e as terras plantadas.
Que limpe as guerras
e as armas,
a fome e a violência,
o cantar das balas.
Que seja perversa,
ridícula,
hedionda,
vingativa e cruel.
Que transborde dos rios,
absorva as margens,
os lagos e os mares,
os ribeiros atravessados.
Para que os lobos
desçam aos povoados,
raivosos,
agressivos.
Que ataquem
capoeiras e pombais,
os currais e as casas,
sem esquecer o homem,
(e a pomba da paz).
Que o seu uivo
se oiça longe,
arrepiante,
lúgubre como a noite.
Que o dilúvio
dure quarentas dias
e quarenta noites,
que venha a arca de Noé,
embarcar-nos.
Todos os bichos
todas as feras,
sem esquecer o homem,
(e a pomba da paz).
Que navegue por entre os cumes
das montanhas naufragadas.
Que depois de encalhar,
devolva ao seu lugar natural,
todos os bichos
todas as feras,
sem esquecer o homem,
(e a pomba da paz).
Que o bem o mal multiplicado,
se espalhe naturalmente
outra vez pela terra.

Para que os meninos das cidades,
os mendigos em farrapos,
o uivar dos lobos,
dos cães vadios,
os gatos nos telhados,
todos os bichos e feras,
a guerra e o cantar das balas,
sem esquecer o homem,
(e a pomba da paz)
me deixem ouvir o cantar da chuva.

Castelo Branco, 13/03/1987

Texto: Victor Gil
Fotografia:  Aliperti (Olhares.com)

2 comentários:

Andradarte disse...

É a história da pescadinha.....
Belo texto....muito actual...
Abraço

RosanAzul disse...

Meu querido Gil, teu poema está lindo... intenso, reflexivo, profundo... Veja você, tantos anos já se passaram e parece que tudo e nada mudou... Sem dúvida, um belo texto num grito de igualdade e PAZ!
Um beijo azul com meu carinho de sempre! Rosana